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Dia de fúria: em 2005, Nilton Santos rasgou o verbo a PLACAR

Em meio às homenagens por seus 80 anos, bicampeão do mundo revelou mágoa com puxa-sacos e não queria mais ser chamado de Enciclopédia do Futebol

Nilton Reis dos Santos, o Nilton Santos (1925-2013), e também popularmente A Enciclopédia do Futebol. Ou não? Um dos maiores jogadores da história do Botafogo, que desde 2015 dá nome ao estádio gerido pelo clube carioca – também foi eleito pela Fifa, em 2000, como o maior lateral-esquerdo de todos os tempos – não queria homenagens às portas do aniversário de 80 anos. Em entrevista exclusiva a PLACAR, ele desabafou e abriu o coração.

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Na matéria assinada pela repórter Joanna de Assis em junho de 2005, o saudoso craque que disputou as Copas de 1950, 1954, 1958 e 1962 – as duas últimas como titular e campeão – não poupou verdades, apesar da gratidão ao futebol.

Nilton Santos estava cansado de seguidas ligações que recebia e a constante busca por interesses envolvendo o seu nome, seja por políticos ou pessoas envolvidas com o esporte naquele momento.

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'Ah, esse aqui jogou com o Pelé....
‘Ah, esse aqui jogou com o Pelé….” Não senhor! Pelé é que jogou comigo’, disse o craque

“O telefone toca aqui o dia todo… não aguento mais isso! Toca às 5 horas da manhã! Eu não tenho mais sossego! Eu nem atendo… Aliás, nem sei por que te atendi”, esbravejou, sem poupar nem mesmo a reportagem.

“Não tenho mágoa. O futebol me salvou. Eu era filho de pescador. Mas foi uma fase. Não quero viver isso para o resto da vida. Já foi! Comprei uma casa em Araruama, onde eu atravesso a rua e estou na praia. Era isso o que eu queria para mim”, completou em outro trecho.

Na conversa, A Enciclopédia dizia ainda que sequer acompanhava mais jogos de futebol, escolha atribuída ao êxodo de bons jogadores do país para o futebol do exterior, e fazia um pedido curioso: “Eu quero tranquilidade. Quero ser esquecido”.

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“Olha, me desculpe de novo, mas eu precisava falar. Agora vou parar porque isso já está me cansando… Tchau!”, concluiu.

Nilton Santos ganhou o apelido pela inteligência em campo e por ser considerado um pioneiro. Antes dele, laterais apenas defendiam. Depois, passaram a atacar. Em 1962, no Chile, protagonizou um inesquecível lance ao evitar um pênalti dando dois passos para frente logo após cometer falta em um adversário, diante da Espanha. O árbitro marcou a infração fora da área.

Ele morreu em 27 de novembro de 2013, no Rio de Janeiro, vítima de insuficiência respiratória. O Botafogo, desde 2007, arcava com despesas hospitalares.

Confira a reportagem na íntegra:

Um dia de fúria

Em meio às homenagens por seus 80 anos, Nílton Santos guardou um momento para o desabafo: aqui, ele revela sua mágoa com os puxa-sacos e não quer que o chamem mais de enciclopédia!

Joanna de Assis

O senhor está completando 80 anos…
(Interrompendo) Já passei um monte de aniversário e ninguém me ligou. Mas agora é 80 anos, né? Não quero homenagem alguma! O Botafogo inventou isso, mas eu não estou interessado! Não sou herói. Quem vai para a guerra é que é, não eu. Eu quero ser esquecido!

Mas…
Tem gente que me conhece e acha que é meu amigo. Não é meu amigo! Quero que respeitem a minha idade! Os caras da minha época já foram… só resta eu. Já passou! Eu como e durmo em cinco minutos porque sempre fiz o bem… fiz o bem para muita gente! Mas não acredito em Deus, apenas tenho a minha religião. O telefone toca aqui o dia todo… não aguento mais isso! Toca às 5 horas da manhã! Eu não tenho mais sossego! Eu nem atendo… Aliás, nem sei por que te atendi.

O senhor tem alguma mágoa do futebol?
Não tenho mágoa. O futebol me salvou. Eu era filho de pescador. Mas foi uma fase. Não quero viver isso para o resto da vida. Já foi! Comprei uma casa em Araruama, onde eu atravesso a rua e estou na praia. Era isso o que eu queria para mim, mas quase não tenho tempo de ficar lá. Aí, a prefeita me chamou para fazer uma campanha: “Remédios a 1 real”. E eu fui. Eu e mais três ex-jogadores. Só que o pessoal falta. E eu não posso faltar. Nílton Santos não pode faltar! Eu não dou entrevista, mas não sou mal-humorado. Só que, se eu não desabafar com você, meu bem, eu enfarto… sério. Ficam me ligando e perguntando das Copas de 1950, 54… Vai pesquisar!!! Querem ganhar dinheiro em cima de mim? Não falo mesmo. E aí depois ficam me chamando de mascarado. Safados, sem-vergonhas! Querem ganhar dinheiro comigo? Aí, eles devem falar que eu sou esclerosado… Eu vivi em um meio danado, sei muito bem como são as pessoas.

Nilton Santos homenageia desde 2015 estádio gerido pelo Botafogo
Nilton Santos homenageia desde 2015 estádio gerido pelo Botafogo

O senhor ainda acompanha o futebol?
Sou desligado pra caramba, não acompanho nada. Pode até ser que seja a velhice. Mas não acompanho jogo nenhum. O que a gente vê aqui é resto! Os bons mesmo estão lá fora. Na minha época não era assim, não. Quando o Dino (da Costa) ia para a Itália, ele falava assim: “Garrincha, tenho chance de ir para lá (Itália). Passa a bola para mim, para eu fazer gol?”… Aí, o Garrincha driblava todo mundo e passava a bola para ele. Aí, eu falava: “Não vai dar nada para o Garrincha, não?” Eu falava na brincadeira, mas era sério. Para o Garrincha nada? Ninguém dava nada mesmo para ele. Eles estão lá até hoje. Devem estar ricos.

O senhor…
Eu queria mesmo era viver isolado. Mas hoje estou aqui, na Senador Vergueiro, na praia do Flamengo. Mas a culpa é minha. Eu que quis ajudar o governo. É um bem que eu faço pela velhice. Negar, faria de mim um bandido. Mas eu quero ficar isolado. Minha vida foi muito agitada: Seleção, Botafogo, viagens… Minha mulher sabe disso. Hoje eu acordo cedo e vou para a praia. Eu e o “Podi”, um vira-lata que vive comigo (foi um cachorro atropelado que a mulher encontrou na rua). Ele é esperto, viu? Precisa ver… Afinal, é melhor um cachorro amigo do que um amigo cachorro, né? Porque eu já tive muitos amigos cachorros. Pô, tô sozinho. Não tem mais ninguém da minha época. Aí, ficam te perguntando: “Lembra de 1948?” Porra, se eu não me lembro, sou mascarado… É uma bosta isso!

Quais as funções que o senhor recebeu agora no Botafogo?
No Botafogo, eu não queria aquela incumbência de ter de ir lá. Mas aceitei. Vou de vez em quando, para falar com os atletas. Mas está cheio de gente enciumada… Fui na vitória do Botafogo diante do Vasco, parecia que eu havia jogado! “Ah, Nílton, você é pé-quente!” Sim, sou pé-quente mesmo, nunca perdi uma decisão! Tenho 26 títulos… Mas eu vim aqui para torcer, aí vem a pessoa e fala: “Gostou de ganhar?” Dããããã! Não… odiei, achei uma merda. Eu gosto é de perder (irônico). Dá licença, né? Cada perguntinha…

Mas…
Pô, eu vou para a praia, chegam e me falam: “Olha, estou te conhecendo de algum lugar…” Ah, fica quieto, né? Se as pessoas soubessem que o que eu quero é sossego… Eu quero tranqüilidade! Quero ser esquecido! Tanta gente que quer aparecer… Por que eu? Aí ficam me falando… “Ah, esse aqui jogou com o Pelé….” Não senhor! Pelé é que jogou comigo; eu já estava lá quando ele chegou! Ficam me chamando de Enciclopédia do Futebol. Que Enciclopédia, o quê! Desculpe-me por estar desabafando com você, mas isso está me fazendo um bem enorme… Se eu não falar, eu enfarto, sério! Pô… Chegam para um menino de 10 anos e me apontam: “Sabe quem é ele, Zezinho?” E eu fico ali… Feito um boneco, olhando para os dois. Pô, não sou retardado! É claro que o moleque não sabe!!! Olha, me desculpe de novo, mas eu precisava falar. Agora vou parar porque isso já está me cansando… Tchau!

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